Retrocesso: STJ privilegia interesses de operadoras de planos de saúde acima da vida de milhares de consumidores

Julgamento realizado nesta quarta-feira estabelece que rol de procedimentos de planos de saúde, lista de atendimento obrigatório das operadoras, é taxativo mitigado; empresas passam a ter o direito de negar tratamentos a pacientes

Nesta quarta-feira (8) foi retomado pelo Superior Tribunal de Justiça o julgamento do rol de procedimentos de planos de saúde, a lista de atendimento obrigatório das operadoras. O STJ foi favorável ao rol taxativo mitigado, lista mínima de procedimentos. Isso significa dizer que, em um primeiro momento, as operadoras de planos de saúde podem se recusar a custear determinados tratamentos, com exceções.

A interpretação coloca em xeque a vida de 49 milhões de usuários de planos de saúde, que poderão ter o acesso a tratamentos negados pelas operadoras com respaldo jurídico.

“Quem perdeu hoje foi a cidadania. O STJ, que se autodenomina Tribunal da Cidadania, mostrou sua posição, deixando claro que o lucro das operadoras de saúde está acima da vida de milhões de brasileiras e brasileiros. A limitação da cobertura com o rol taxativo é preocupante e deixa as pessoas em um cenário de extrema vulnerabilidade diante das empresas”, afirma Carlota Aquino, diretora-executiva do Idec.

A decisão com seis votos favoráveis ao rol taxativo e três para o exemplificativo, representa um grande retrocesso ao entendimento consolidado há mais de 10 de anos pelo Poder Judiciário em favor dos consumidores e do SUS. A nova interpretação estabelece o entendimento de que o Rol de Procedimentos e Eventos da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) tem caráter taxativo e não exemplificativo, como a maior parte da jurisprudência sempre compreendeu.

Na prática, isso significa que o direito de receber um medicamento ou tratamento mais adequado estará sob forte ameaça. Uma vez que a decisão fica a cargo somente das empresas, que passam a ter o direito de negar a famílias tratamentos e medicamentos indicados por médicos – com eficácia comprovada – tendo respaldo jurídico. Usuários do serviço, que pagam caro por seus planos, terão mais gastos tendo que assumir também com os tratamentos.

E os impactos não param por aí: o Sistema Único de Saúde (SUS) não passará ileso, será diretamente impactado, arcando com ainda mais sobrecargas.

As posições frente ao julgamento

Durante o julgamento nesta tarde, o ministro Villas Bôas Cuevas, que no último julgamento, em março de 2022, pediu vista, votou a favor do rol taxativo, com a justificativa de que o rol exemplificativo pode causar um desequilíbrio econômico e coletivo aos contratos, “A cobertura indiscriminada ofende o equilíbrio econômico da relação contratual”, o que pode levar à quebra da operadora e fechar o acesso aos contratos.

“A justificativa de desequilíbrio econômico é descabida e fabricada. O setor comprovadamente foi um dos que mais lucrou antes e durante a pandemia, e teve sustentabilidade garantida nos últimos 10 anos, enquanto o rol era entendido como exemplificativo”, afirma Ana Carolina Navarrete, coordenadora do Programa de Saúde do Idec.

Navarrete explica que entre 2014 e 2018, os lucros das operadoras mais que duplicou, segundo consta nos dados do Ipea. E complementa: “de acordo com a própria ANS, de 2010 a 2020, as receitas saltaram de R$ 72,6 bilhões para R$ 217,5 bi. As despesas também cresceram, mas sempre abaixo dos lucros. O setor chega, portanto, em 2021 mais estável do que nunca após uma década de crescimento. É infundado dizer que as empresas estão sendo impactadas negativamente”.

De acordo com Villas Boas, não há obrigação de custeio de procedimentos por parte das empresas, caso não esteja incluído na lista de coberturas da ANS; cabendo ao consumidor e às operadoras a possibilidade de renegociação, para realização de aditivo contratual.

Além disso, de maneira excepcional, a cobertura poderia ser admitida se esgotadas as opções terapêuticas do Rol ou diante da recomendação de órgãos técnicos, nacionais e internacionais:

“O STJ, que se autodenomina Tribunal da Cidadania, guiou-se hoje pelos interesses econômicos das operadoras de planos de saúde”, afirma a diretora-executiva do Idec.

Os ministros Raul Araújo, Isabel Gallotti, Marco Buzzi e Marco Aurélio Bellizze seguiram com votos a favor do rol taxativo, acompanhando o relator e o ministro Cuevas. Já a favor do rol em caráter exemplificado, os ministros Paulo de Tarso Sanseverino e Moura Ribeiro acompanharam a ministra Nancy Andrighi .

O direito à saúde para todos

Desde 1998, com a aprovação da Lei de Planos de Saúde, o rol de procedimentos foi interpretado pela Justiça como exemplificativo, ou seja, a lista de procedimentos cobertos pelas operadoras é considerada referência mínima. Segundo esse entendimento, a cobertura vai além de seu conteúdo listado, incluindo, eventualmente, outros procedimentos prescritos por médicos que tenham eficácia comprovada. Em oposição, há o entendimento das empresas de que o rol seria taxativo, que delimita a lista de coberturas, não dando margem a outras interpretações.

O Idec, enquanto instituição que luta pelos direitos de consumidores e que acompanha de perto o caso há anos, enfatiza o quanto a mudança no caráter do rol é um imensurável retrocesso aos direitos conquistados há mais de 20 anos.

A instituição permanecerá estudando medidas em prol do consumidor, do direito à saúde e pressionando atores públicos em defesa da cidadania.

“O consumidor não deve desistir de defender seus direitos, mas a consolidação do entendimento pelo rol taxativo contribuirá para o aumento  da judicialização e dificultará a defesa dos usuários em juízo, ”, diz Marina Paullelli, advogada do Idec.

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