Mulher: um pedido de socorro na luta pela sobrevivência

Doze de fevereiro de 2020, um dia que seria normal para Fernanda Souza Silva, de 33 anos. Ela, que morava em Bela Vista de Goiás, tinha o hábito diário de deixar o veículo estacionado próximo a uma padaria na cidade interiorana. Pegava um ônibus do transporte público e desembarcava em Goiânia, onde trabalhava em um hipermercado. No retorno para casa, o caminho inverso. A rotina se rompeu quando, na data mencionada, não apareceu para o expediente. A mulher foi vista pela última vez ao sair do local onde deixava o veículo. O principal suspeito do sumiço era o homem que ela se relacionava há pouco mais de 20 dias.

Um dia após o desaparecimento, Allan dos Reis, de 22 anos, teria usado o carro e o cartão de crédito de Fernanda para se encontrar com a ex-mulher e os dois filhos dele em um shopping. Ele foi preso no dia 18 de fevereiro daquele ano, em Marianópolis, Tocantins. O corpo de Fernanda foi encontrado dois dias após a prisão do ex-companheiro.

O caso chocou o Estado e é um dos que marcam os 17 anos de carreira da delegada Cybelle Tristão, titular da Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (Deam), em Aparecida de Goiânia.

“Ele teria a estrangulado após uma discussão. Colocou o corpo de Fernanda no porta-malas do carro dela e a enterrou em uma mata entre Caldas Novas e Piracanjuba. Após ser preso, o até então namorado da vítima confessou o crime e disse que foi motivado por ciúmes. Ele nos levou até o local onde estava o corpo e detalhou como tudo aconteceu. Naquele momento, diante de tanta crueldade, ainda mais como mulher, marcou minha carreira e a do delegado Antônio André, que estava à frente das investigações”.

Trata-se de uma das várias histórias que elevam a triste estatística de feminicídio, termo utilizado para denominar assassinatos de mulheres cometidos em razão de gênero.

Levantamento feito pela Secretaria de Segurança Pública de Goiás (SSP-GO) mostra que em 2021 foram registrados 54 crimes com essa tipificação no Estado. No ano anterior, quando Fernanda foi assassinada, foram 44. “São vidas que se perdem. Mulheres que deixam histórias, filhos, mãe, pai, sonhos”, destaca Tristão.

Além disso, o crime de ameaça de feminicídio ou de agressão saltou de 14.772 registros, em 2020, para 15.734 no ano seguinte. Segundo a delegada, os dados de crime contra a mulher podem ser ainda maiores. Isso porque a pandemia é considerada um fator acelerador de violência, uma vez que vítima e agressor passam mais tempo juntos em um mesmo ambiente, e nem todo caso chega à polícia.

“Diferente de crimes praticados contra homens, os que ocorrem com mulheres são de suspeitos que, em maioria, vivem com elas. São namorados, maridos, ex-companheiros, pais, filhos, netos. Muitos culpam as próprias vítimas. Infelizmente, o machismo ainda está muito impregnado na sociedade”, destaca a delegada ao BG.

Dor que não cessa

“É triste e constrangedor saber que no nosso lar estamos sujeitas a situações de agressão. Porque elas não são apenas físicas, mas também psicológicas e suas marcas permanecem eternamente na memória. Durante alguns anos, fui vítima de um relacionamento abusivo. Ele não me batia com as mãos, mas em palavras. Como eu tinha vergonha de falar para as pessoas, ninguém sabia. Meu semblante foi mudando, até o dia que fui diagnosticada com depressão. Hoje tomo remédios, mas estou bem melhor. Ele saiu de casa e não tenho mais notícias.” O depoimento é de A.S., que prefere não ser identificada.

Conforme apurado pelo AR, somente no ano passado mais de 10,7 mil mulheres registraram boletim de ocorrência relatando violência por lesão corporal ou física no Estado. No mesmo período, as denúncias para crimes de honra – como calúnia, difamação e injúria – somaram 10.735 notificações.

A delegada Cybelle Tristão relata que os números podem ser muito maiores. O principal fator é que muitas vítimas ainda não registram denúncias por medo, sob ameaça ou até mesmo vergonha. Ela ressalta que diariamente são notificadas agressões de todos os tipos contra mulheres em Goiás, sendo as principais tipificações: ameaça; lesão corporal; crimes de honra; estupro; crime de perseguição (stalker nas redes sociais) e feminicídio.

“É importante que as mulheres fiquem atentas ao menor sinal de violência. Elas não começam com o feminicídio, mas, em grande maioria, terminam na morte dessa mulher. Até chegar a este ponto, ela passa por situações como uma ameaça, ciúme em excesso, sinais de agressividade, mesmo que sutis. Ela deve ter a perspicácia de identificar estes aspectos logo no início da relação e romper com o ciclo de violência o quanto antes”, orienta a delegada Cybelle Tristão.

Denúncia pode salvar vidas

Segundo a titular da Deam de Aparecida de Goiânia, muitas mulheres deixam de denunciar por pensarem que não terão um acompanhamento, ou por receio de que a pessoa volte ainda mais agressiva. “Infelizmente, muitos homens ainda pensam que as vítimas são objeto de posse deles. Então, elas não têm o direito de sair, ter vida social, trabalhar”, alerta.

Mas Tristão orienta que a denúncia é fundamental para que o ciclo de violência seja rompido o quanto antes. Somente por meio dela é que o agressor pode ser preso, os casos são tratados com severidade pelo Judiciário e também com celeridade por parte da Polícia Civil, para concluir as investigações.

Trata-se de uma medida a curto prazo, para coibir o agressor que já comete esse tipo de crime. Mas ela aponta que a educação pode mudar a cultura de toda uma geração. “Acredito que esse tema deve ser abordado nas escolas. Com a conscientização, aliada à informação, podemos mudar a realidade que foi construída há muitos anos, que é o machismo”, pontua.

Além dos canais tradicionais como o 180, da Central de Atendimento à Mulher, o 197 (Polícia Civil) e 190 (Polícia Militar), o Estado de Goiás passou a receber denúncias on-line, uma forma que independe do laudo pericial no primeiro momento. O sinal vermelho, que é um x desenhado na mão da mulher, também é uma das formas sutis de informar que está sendo vítima de agressão. Cartórios e drogarias recebem denúncias de violência doméstica através do sinal.

“Às vezes, a vítima liga com medo para uma unidade de policiamento para pedir uma pizza ou um remédio, como forma de segurança para não dizer que está realizando uma denúncia”, explica. Ela destaca ainda que as políticas públicas adotadas são importantes para cada vez mais conscientizar e encorajar mulheres a denunciarem os agressores.

Outra forma de denúncia é o aplicativo do Batalhão Maria da Penha, o APP Penha. O registro da mulher vai direto para a Central de Operações da Polícia Militar (Copom), que já identifica a violência e encaminha uma equipe até o local.

Medidas de acompanhamento após a denúncia

A reportagem do A Redação apurou que, em média, mil mulheres são acompanhadas mensalmente, em Goiânia, pelo Batalhão Maria da Penha. A Região Noroeste da capital tem o maior registro de casos. Já no Estado, vítimas que são acompanhadas por medida protetiva podem passar de duas mil por mês.

Segundo a tenente-coronel Neila de Castro Alves, após realizar a denúncia, a mulher passa a ser acompanhada periodicamente pelo Batalhão Maria da Penha. Essa medida é realizada com visitas presenciais nas residências das assistidas. “Podemos até entrar em contato via telefone caso a mulher não seja encontrada, no entanto, optamos sempre pelo encontro presencial. Assim, podemos garantir se a medida protetiva está realmente sendo cumprida. Através do olhar de uma criança, podemos perceber o que pode pode estar acontecendo na residência”, enfatiza.

As visitas dependem do ‘grau de risco’ entre vítima e agressor. A tenente-coronel explica que se a mulher estiver exposta a grande risco, a visita presencial é realizada semanalmente. Já se for de risco menor, ocorrem de três em três meses. “Depende também do tempo estabelecido pelo juiz ou se a vítima pede revogação da decisão”, esclarece. Caso o suspeito descumpra a medida protetiva, pode pegar de três meses a dois anos de reclusão.

Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social.
(Artigo 2º, da Lei nº 11.340)

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