Janeiro Branco: a escrita como aliada para elaborar o luto
Por Márcia Silveira*
Certo dia, no início do ano de 2017, eu andava pelas ruas do centro do Rio de Janeiro quando, de repente, fui tomada por uma sensação estranha. Passei a observar as pessoas que andavam, sorriam, conversavam, entravam e saíam das lojas e nada daquilo parecia real, afinal, como poderia o mundo continuar a funcionar normalmente se minha mãe não estava mais nele?
Essa parece ser uma sensação comum entre as pessoas que perdem alguém muito próximo. Em diversas narrativas sobre o luto, surge, em algum momento, a descrição deste conflito entre o que acontece do lado de fora e o que está ocorrendo internamente. Minha mãe havia morrido no final de 2016 e, naquele dia, no centro da cidade, eu ainda estava em processo de luto, tentando entender que o mundo como eu conhecia – com a presença dela – não existia mais.
No livro “O que é o luto”, o filósofo Renato Noguera afirma que uma perda pode provocar certo atordoamento, uma sensação de que nada faz sentido. Neste contexto, a escrita pode ser uma valiosa aliada, pois ela ajuda a nomear e organizar os sentimentos. É normal que neste momento nossos pensamentos sejam invadidos por muitos porquês. O ato de escrever, ainda que não sirva para trazer todas as respostas, ajuda a aliviar a confusão mental comum nesta situação.
Não à toa, muitos autores já publicaram livros sobre o próprio luto. Um dos mais conhecidos é “A ridícula ideia de nunca mais te ver”, da espanhola Rosa Montero, no qual ela fala sobre a morte de seu marido e sobre a importância da escrita como ferramenta para transformar a dor em beleza. A escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie também fez da escrita uma aliada diante da tristeza pela morte do pai e escreveu em suas “Notas sobre o luto” sobre a angústia causada pelo caráter definitivo da morte. Mais recentemente, as brasileiras Noemi Jaffe e Natalia Timerman também publicaram livros nos quais trataram do luto pela morte da mãe e do pai, respectivamente.
Em entrevista ao jornalista Pedro Bial, Noemi Jaffe afirmou que sentiu a necessidade de escrever sobre a morte da mãe, Lili, porque precisava sentir aquela dor, não queria que ela se esvaísse nos afazeres do dia a dia. Para o filósofo Renato Noguera, esta atitude é a mais correta diante do luto. Segundo ele, nos dias atuais, em que o exterior é mais valorizado do que o interior e a positividade tóxica nos faz acreditar que é errado ficar triste, é comum tentar controlar os sentimentos e não se permitir sentir o luto em sua totalidade. Porém, sabemos que a vida não é feita apenas de momentos felizes, então é preciso encarar com maturidade os momentos difíceis. Estar presente e consciente de que é normal sentir dor naquele momento. A escrita é uma forma de presença que nos ajuda a viver plenamente a nossa interioridade.
Em 2017 eu escrevi sobre a sensação de estranhamento ao perceber que minha mãe não habitava mais esse mundo. Foi a maneira que encontrei de organizar dentro de mim aquele sentimento. Desde então, tenho tentado resgatar através da escrita algumas lembranças da época em que ela era uma presença constante na minha vida. Tento fazer o que Rosa Montero ensina: usar a arte da escrita para transformar a dor em beleza.
*Márcia Silveira (@marcia_silveira) é carioca, graduada em Filosofia e pós-graduada em História da Arte. Possui contos e crônicas publicados em diversas antologias. É formada também em Design Gráfico e atuou durante muitos anos como fotógrafa. Desde 2019 é colunista de crítica literária do jornal Diário do Rio. Escreve também a newsletter Página 23. Inventário de Vagas Lembranças (Editora Penalux, 82 pág) é o seu livro de estreia.