[BBB 23] Criado-mudo é uma palavra racista? O doutor em Letras Pablo Jamilk esclarece essa dúvida

O Big Brother mal começou e já está rendendo diversas polêmicas, na última quarta-feira (18), o brother Gabriel Tavares, foi um dos assuntos mais comentados da internet após falar uma palavra considerada racista.

Ao ser questionado sobre onde estava uma toalha de banho, ele falou que ela estava sobre o ‘criado-mudo’, a sister Marvvilla ouviu a fala e imediatamente o corrigiu, falando que essa palavra tinha um histórico racista. Mas será que a sister está correta sobre o significado desta palavra? O doutor em Letras Pablo Jamilk esclarece essa dúvida.

Etimologicamente falando, não há qualquer registro da expressão “criado-mudo” como o “criado da casa na época da escravidão que deveria ficar ao lado da cama sem fazer qualquer ruído”.

O grande problema é que se tem propagandeado que isso existia e, quando apresentam a informação anterior, argumentam que: não é pelo fato de que não se tem registro que não existiu. Ora, isso é fazer história revisionista e, pior, sem qualquer fonte primária: erro crasso, falha acadêmica ou desonestidade intelectual – chame como preferir! O fato é que a origem do termo remonta à língua inglesa.

Acompanhe o raciocínio extraído do meu livro novo – “Moendo Mitos” – que será, em breve, lançado: De quando em quando, somos bombardeados por algumas velhas novidades, que pretendem, de alguma maneira fantasiosa, reinventar a roda. Uma dessas velhas novidades é o caso da expressão “criado-mudo”, que se refere àquele móvel que fica ao lado da cama, aparentemente inocente. Segundo algumas lendas que circulam por aí na boca do povo, não é tão inocente assim.

Bem, acontece que estão se multiplicando por aí histórias de que a expressão “criado-mudo” teria uma origem racista e que remontasse à escravidão, alegando que esse nome se referia à pessoa que trabalhava nos serviços domésticos da casa e que, por alguma razão que até agora ninguém explicou, seria obrigada a ficar em pé ao lado da cama do “senhor” da casa grande, imóvel e sem falar palavra alguma.

Como de costume, a narrativa consegue arrebanhar a pessoa incauta que, ao ouvir sobre o sofrimento alheio, pensa “meu Deus, eu preciso parar de usar esse tipo de expressão”. Também é preciso dizer que algumas marcas da indústria moveleira já hastearam essa bandeira. Afinal, marcas com consciência social (ainda que sem fundamento histórico ou lógico) tendem a vender mais, pois entregam aquilo que o mesmo povo incauto espera ouvir.

Vamos a uma maneira de desfazer essa pseudoetimologia. A origem do termo em questão é de uma tradução adaptada do termo dumbwaiter, da língua inglesa. Decompondo esse termo da língua inglesa, temos dumb, cuja origem é dumbs (Mudo, no gótico), e waiter, que significa “garçom” ou “atendente”, cuja origem é wahten (estar de guarda, no alemão).

A mesa em questão designava um pequeno elevador de carga usado em restaurantes. A definição de “dumb-waiter” no dicionário etimológico em língua inglesa é: also dumbwaiter, 1749, “a framework with shelves between a kitchen and a dining-room for conveying foods, etc.,” from dumb (adj.) + waiter; so called because it serves as a waiter but is silent. As a movable platform for passing dishes, etc., up and down from one room (especially a basement kitchen) to another, from 1847.

Também “dumbwaiter”, 1749, “uma estrutura com prateleira entre uma cozinha e uma sala de jantar para transportar alimentos etc., de mudo (adj.) + garçom; assim chamado porque serve como garçom, mas é silencioso. Como plataforma móvel para passar pratos etc., para cima e para baixo de um cômodo (especialmente uma cozinha no subsolo) para outro, a partir de 1847. (Tradução livre)

Nota-se, sem muito esforço, que a origem do termo “criado-mudo” nada tem a ver com alguém que era obrigado a ficar em pé silenciosamente ao lado da cama de qualquer pessoa.

Não é muito curioso o fato de termos passado todos esses anos sem que esse tipo de fato tivesse chamado a atenção? Isto é, como é possível, desde o fim da escravidão no Brasil, ninguém ter notado a existência desse móvel de nome que reforçaria questões de preconceito no país? Bem, os livros de história não registram essa origem, não registram a terminologia “criado-mudo” para designar o móvel ou a pessoa que deveria segurar um copo d’água ao lado da cama.

Isso é mais um caso de revisionismo narrativo da história, ou seja, a partir de uma narrativa que aparenta ser verdade, toda a história passa a ser revista. É o que eu chamo de “etimologia freestyle”: o “pesquisador” empreende seu trabalho com os critérios que mais agradam e o resultado, usualmente, é uma distorção teórica.

Agora, é evidente que isso não significa que não havia escravos no Brasil, que escravos não foram duramente maltratados e que sobrevivem, em nossa língua, expressões cujo uso é notadamente racista. Acontece que “criado-mudo” não é uma delas.

Previous Article
Next Article